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A árvore e o homem*

 
Carlos Drummond de Andrade

 

O PRIMEIRO… problema que as arvores parecem propor-nos é o de nos conformarmos com a sua mudez. Desejaríamos que falassem, como falam os animais, como falamos nós mesmos. Entretanto, elas e as pedras reservam-se o privilégio do silêncio, num mundo em que todos os seres têm pressa de se desnudar. Fiéis a si mesmas, decididas a guardar um silêncio que não está à mercê dos botânicos, procuram as arvores ignorar tudo de uma composição social que talvez se lhes afigure monstruosamente indiscreta, fundada como está na linguagem articulada, no jogo de transmissão do mais íntimo pelo mais coletivo. Grave e solitário, o tronco vive num estado de impermeabilidade ao som, que os humanos só atingem por alguns instantes e através da tragédia clássica. Não logramos comovê-lo, comunicar-lhe a nossa intemperança. Então, incapazes de trazê-lo para a nossa domesticidade, considerando-lo um elemento da paisagem, e pintamo-lo. Ele pende, lápis ou óleo, de nossa parede, mas esse artifício não nos ilude, não incorpora a árvore à atmosfera de nossos cuidados. O fumo dos cigarros, subindo até o quadro, parece vagamente aborrecê-la, e certas arvores de Van Gogh, na sua crispação, têm algo de protesto.

 

Van Gogh - Amoreira

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De resto, o homem vai renunciando a esse processo de captura da árvore através da arte. Uma revista de vanguarda reúne  algumas dessas representações, desde uma tapeçaria persa do século IV, onde aparece a palmeira heráldica, até Chirico1, o criador da árvore genealógica do sonho, e dá a tudo isso o título: Decadência da Árvore. Vemos através desses documentário que num Claude Lorrain da Pinacoteca de Munique, Paisagem com Caça2, a árvore colossal domina todo o quadro, e a confusão de homens, cães e animal acuado constitui um incidente mínimo, decorativo. Já em Picasso a árvore se torna raríssima, e a aventura humana seduz mais o pintor do que o fundo natural em que ela se desenvolve. O que será talvez um traço da arte moderna, assinalado por Apollinaire, ao escrever: “Os pintores, se ainda observam a natureza, já não a imitam, evitando  cuidadosamente a reprodução de cenas naturais observadas ou reconstituídas pelo estudo… Se o fim da pintura continua a ser, como sempre foi, o prazer dos olhos, hoje pedimos ao amador que procure tirar dela um prazer diferente do proporcionado  pelo espetáculo das coisas naturais.” Renunciamos assim  às  arvores, ou nos permitimos fabricá-las à feição dos nossos sonhos, que elas, polidamente, se permitem ignorar.

Claude Lorraine - Paisagem com Céfalo e Prócris reunidos por Diana

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       Contudo “à noite, as arvores passeiam entre os bois”. Foi Jules Renard quem o observou. Esse escritor chegou a fixar, entre outros croquis, uma “reunião meditativa de arvores, presidida  pela lua”. Já lhe damos menos crédito quando se refere assim a um exemplar solto: “A árvore, que, com o seu galho esticado, tem o ar de dizer-me: Eu te ordeno.” Realmente, é a sublime indiferença das arvores com relação ao pintor, escritor ou turista, que lhes confere  essa dignidade vegetal a que inutilmente aspiramos, confundindo-a com placidez. A árvore não se lembraria de recomendar-nos ou proibir-nos coisa alguma. Um carvalho entre águas e nuvens deixa-se ser, desdenhosamente, o carvalho de Pope, e à sua sombra o poeta compõe a Ode à Solidão; um loureiro consentirá em ser plantado por Petrarca no túmulo de Virgílio, em Pausilipo, e ao perecer será substituído por exemplar menos ilustre, cultivado por um poeta menos ilustre, Casimir Delavigne. E um salgueiro não  porá embargo a pender sobre o túmulo de Musset, no Père Lachaise. Nos parques municipais, gerações e gerações de namorados gravam no lenho indiferente um nome, uma data, um juramento; mas as arvores depositárias desse legado abstêm-se de assimilar o frenesi ou a dolência que os inspirou. Tudo fazemos para comprometê-las em nossas aventuras de homem, atribuindo-lhes mesmo, pela imaginação poética, a revolta interior contra a sua condição, um “desejo de ser homem”, que não é afinal mais do que manifestação exacerbada de nosso pobre romantismo, compensação literária ao enfado de nossa própria e incômoda  condição. Mas deixemos a árvore em paz. Ela não ambiciona o estado civil e suas lágrimas.

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E glória à fotografia, que se apresenta como mediadora no impasse entre o homem e a árvore, agravado pela pintura. Glória aos fotógrafos, a essa objetiva humilde que vai visitar as arvores na mata, no jardim público ou à beira da estrada, e delas reconhece a imagem menos imperfeita, porque  menos  individualista – a árvore em estado de árvore. Não me achando em condição de possuir um sítio, nem mesmo uma araucária particular, incompatível com as dimensões do metro quadrado em que resido, eu (e aqui sou João, Leovigildo, Heitor, homem urbano em geral), consolo-me  contemplando algumas  fotografias de olmos, faias, eucaliptos, jequitibás, espécies resinosas e essências. Amo vê-las em grupo ou isoladas, oferecendo à pressão do vento a massa compacta de folhagem; refletindo, interceptando ou matizando os raios solares que tentam penetrá-las; levando-se à beira da corrente, em sincera solidão; ou ainda contrastando com os frágeis monumentos de pedra, tijolo e cimento, que chamamos de casas, e que é tão raro não “sobrarem” na natureza; e até mesmo esparsas entre esses outros monumento, os mais frágeis de todos, de nervos e vasos sanguíneos, que chamamos de homens, e tampouco sabem integrar-se no conjunto natural onde folhas, raízes, insetos e ventos se organizam sem política. Sim, minha simpatia vai agora para essa composição fotográfica onde duas mulheres de cabeça  inclinada avançam por uma longa alameda de troncos veneráveis. A câmara esboça aqui uma compatibilização, por assim dizer, do elemento vegetal com o humano. A árvore com sua altura de árvore, a criatura humana com seu porte de criatura humana. E entre as sombras paralelas das mulheres e das arvores, meu olhar também passeia meditativo, pacificado, nostálgico, talvez de uma primitiva unidade de que houvéssemos perdido a memória, e estaria prestes a recompor-se. Glória e gratidão aos fotógrafos, que respeitam as arvores e não tentam decifrá-las.

 

* ensaio retirado do livro “Passeios na Ilha” de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1952

1 Vasculhei a internet mas não encontrei nenhuma referência a esse trabalho do pintor surrealista, Giorgio de Chirico; será outro?;
2 Tampouco a tal pintura “Paisagem com Caça” aparece nas listas disponíveis sobre a obra de Claude Lorraine. Mas em várias delas enormes arvores figuram em destaque. Exemplo disso é “Paisagem com Céfalo e Prócris reunidos por Diana” que postei aí.

Ai, árvores!*

charge de Bandeira e Drummond

Em sua crônica de domingo para o Correio da Manhã comentou o poeta Carlos Drummond de Andrade, com aquelas palavras irônicas que ele sempre tem para as calamidades remediáveis ou irremediáveis da vida, o brutal assassinato de Chiquinha, mais um crime de dois exemplares perfeitos da juventude transviada.

Chiquinha era uma amendoeira, assim crismada pelo poeta em homenagem ao ex-prefeito Francisco Negrão de Lima, que a mandou plantar a seu pedido. “Volta, Chiquinha, ao limbo das pequeninas árvores sacrificadas a cada instante pelos que não sabem amar coisa alguma e não merecem sombra”, arrematava o poeta em sua crônica.

Eu, que já vi seis das minhas Chiquinhas passarem ao limbo, ando em contínuo sobressalto pela sobrevivência de uma sétima, esta, como as outras, mandada plantar por Negrão de Lima a meu pedido. As duas primeiras foram plantadas no inverno de 57. Pouco tempo depois parti para a Europa e nos quatro meses que estive fora, pensei nelas com carinho. Quando voltei vi que tinham desaparecido.

As que as substituíram não tiveram melhor sorte; uma depois da outra foram decepadas para brinco de um instante. Dessa vez já não pedi substitutas; compreendi que era inútil lutar contra a selvajaria 1 dos desocupados. Mas um belo dia lá estavam não duas, estavam três mudinhas de árvores, lindas, lindas na sua inocência de vegetais felizes. Duas semanas depois uma era degolada. Das restantes uma era perfeitamente conformada, verdadeira miss; a outra, não, haste for de prumo, irregularmente esgalhada, meio feinha e rebelde. A bonita viveu bonita, cada vez mais bonita, uns quatro meses. Uma manhã amanheceu reduzida ao talozinho melancólico: tinha sido sacrificada pelos que “não merecem sobra”. A minha reação foi irônica; como a do poeta: fiquei indignado, roguei pragas, converti-me em princípios à adoção da pena de morte, pelo menos para os assassinos de árvores… Agora minha última esperança é a Chiquinha feia. Nem posso dizer que seja esperança. Alguma coisa me diz que será assassinada como as outras…

Contou-me Júlio Moura que meu conterrâneo José Raul de Morais, grande amigo das árvores, tem na sua chácara de São Clemente azulejos com versos dos nossos poetas. De Adelmar Tavares são estes, que deveriam ser ensinados aos meninos em nossas escolas primária:

Raul, que felicidade!

Plantar árvores e vê-las

Crescer rumando às estrelas,

Dando sombras, e frutos, e flor

Aos filhos dos nossos filhos,

Aos netos do nosso amor.

Quero improvisar no momento uma quadra para a chácara de Morais. Não será tão bela quanto a sextilha transcrita, que eu não sou Adelmar, mas vai como homenagem ao Morais, ao Moura, a Negrão de Lima, a Drummond e às árvores em geral:

Já reparaste na árvore antiga

Esse ar de mão que é toda carinhos?

– Árvore, nossa melhor amiga,

Fonte de sombra, mansão de ninhos!

Manuel Bandeira, em 09 de setembro de 1959

*  Crônica publicada em “Andorinha Andorinha” (José Olympio Editora)

** exemplar emprestado pelo Projeto das bibliotecas nos pontos de ônibus, iniciativa do Centro Cultural T-Bone

1 – o mesmo que selvageria.